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22.5.10

Encontro das Vozes, Coliseu dos Recreios, 8 de Maio

Quando no mesmo espaço, na mesma noite, se juntam a grande diva cabo-verdiana e um dos mestres da música angolana, o que se pode esperar é uma grande festa de música popular, uma comunhão forte e uma partilha de emoções entre palco e plateia. No entanto, só a espaços isso sucedeu. Vamos por partes...

Muito mais do que um grande nome da música de Cabo Verde, é incontornável que Cesária Évora é uma das referências da música africana e da música em geral. Como tal, fica a sensação de que assistir a um concerto seu, ainda mais sendo a primeira vez, é uma ocasião especial, um momento grandioso, pelo que a expectativa era naturalmente bastante elevada. A maior dúvida inicial e que temperava alguma desta expectativa era se, aos 68 anos e dois anos depois de ter um AVC, a intérprete conseguiria manter intactas todas as suas capacidades. Todavia, se o concerto ficou aquém do esperado, não foi com por culpa destes pressupostos mais cautelosos.
Com mais coladeras do que mornas, a performance de Cesária foi, em termos vocais, verdadeiramente irrepreensível, sem falhas, sem mácula, sem qualquer perda de fulgor. Aliás, juntando isso a um imenso qualidade dos músicos (cordas, percussão africana e um saxofone), pareceu a espaços que estávamos a ouvir o disco e não um concerto. Contudo, foi também por aí que o espectáculo começou a desiludir, porque se esperava que fosse muito mais do que um concerto profissional (não sei se o facto de ser gravado para a RTP, terá tido influência nesse facto), que fosse marcado por uma demonstração genuína de emoção e de expressividade, numa forma que se sente e não se explica, algo que, na nossa opinião (minha e do José Bernardo Monteiro), acabou por não suceder. É certo que, por falha nossa, não ouvimos o seu último trabalho discográfico, Nha Sentimento, sobre o qual incidiu o alinhamento do concerto (o que fez com que conhecêssemos apenas algumas músicas, como "Petit Pays", "Angola" e pouco mais, faltando temas emblemáticos como "Mar Azul", "Sangue de Beirona" ou "Nho antone escaderote"). Mas não me parece que tenha sido isso a justificar a forma relativamente morna como decorreu o concerto (que o digam os Unthanks, dois dias mais tarde). Num concerto em que Cesária Évora praticamente não comunicou com o público, um dos momentos paradigmáticos da forma pouco intensa como decorreu o concerto foi, já depois de uma pausa para cigarro da cantora, a interpretação quase deprimente do clássico "Besame Mucho", com arranjos easy-listening e toques jazzísticos algo duvidosos e com um solo de saxofone a fazer lembrar quase (bem, talvez não tanto)... Kenny G(?!). Curiosamente, um dos momentos altos acabou por ser o momento em que Bonga entrou em palco para recriar em dueto "Sodade", o tal tema celebrizado por Cesária 20 anos depois do angolano o ter cantado, e que teve direto há alguns anos a uma versão conjunta. Embora com demasiado aparato, esta colabgoração trouxe ao espectáculo a expressividade que faltou em outros momentos, diminuindo ligeiramente o rasto de desilusão que provocou este concerto a quem, como nós, tinha expectativas bem diferentes.
(P.S.: Poucos dias mais tarde, Cesária Évora teve um ataque cardíaco em Paris, que a levou a cancelar o resto da digressão. Independentemente de ter tido influência ou não no espectáculo menor que deu em Lisboa, ficam aqui os nossos votos de melhoras e a certeza de que, em qualquer dos casos, a diva cabo-verdiana continuará a ser para nós uma referência incontornável da música étnica).

Depois de um intervalo de cerca de 30 minutos, foi a vez de Bonga e seus músicos subirem a palco. Confesso que não sou grande conhecedor da obra de Bonga, limitando-me a ter uma perspectiva superficial do seu teor nas últimas décadas, com uma base popular de carácter francamente comercial, de que não sou particularmente apreciador. Assim sendo, foi com surpresa que, com reco reco em punho, o músico começou o concerto em toadas de intimismo e espiritualidade, com a recuperação do seu repertório de início de carreira, muito marcado pelo seu percurso de revolucionário na defesa da auto-determinação angolana e mais ligado à música tradicional de raiz, embora com arranjos na altura considerados modernos e vanguardistas. Enquanto isso, Bonga ia revelando uma postura antagónica da de Cesária, no que se refere ao sentido de comunicação com o público, manifestando boa disposição, algum sentido de humor e até alguma toada provocatória (no bom sentido) em relação à "malta da sua geração", num tipo de interacção que se prolongou até ao final do espectáculo. A partir de "Lágrima no canto do olho", efectuou-se uma reviravolta no alinhamento, dando lugar aos principais hits da sua carreira. Em ritmo de cruzeiro, passaram pelo palco temas como "Kaxexe", "Mulemba Xangola" ou o muito requisitado "Mariquinha" (irritantemente pedido, diga-se passagem, de tal forma que Bonga chegou a referir que aquilo não era "discos pedidos") . Um final de concerto que, goste-se ou não, foi honesto e genuíno, embora pouco surpreendente e mágico.

Concluindo, era para ser uma festa de música popular, mas a sensação que fica no final é a de que tivemos um espectáculo mais elitista (os preços não ajudaram), com pouca presença da comunidade africana, pouca chama, demasiado formatado e preparado para um público eclético, mas genericamente pouco exigente. E, assim sendo, o balanço não pode, infelizmente, ser positivo.

21.5.10

The Unthanks, CC Olga Cadaval, Sintra, 10 de Maio


Em 2008, um certo projecto folk do nordeste britânico, chamado Rachel Unthank & The Winterset, actuou ao final da tarde de um dos dias do FMM Sines (palco da praia). Na altura, enquanto o trânsito no regresso da praia impedia parte da equipa do "Artesanato Sonoro" de assistir ao respectivo concerto, o nosso representante Rui Veiga teve o prazer de estar presente e caracterizou a prestação vocal que ouviu como "doce, sublime, ingénua, pacífica". Apesar destas palavras, o projecto teria desaparecido facilmente do horizonte de muitos de nós, não fosse a bem-dita compilação de Sines, onde se encontrava uma verdadeira pérola, chamada "Sea Song", versão do grupo para um original de Robert Wyatt. A partir deste instante, foi um pequeno passo até à audição do álbum The Bairns, seguramente um dos segredos folk da década, recheado de um sentido de classicismo delicioso e pleno de beleza e candura.

Dois anos mais tarde, o projecto voltou a Portugal, com um novo disco e um novo nome (passaram a intitular-se Unthanks). Embora não tivéssemos ouvido este novo trabalho (é de 2009, como é que nos passou ao lado??), eu e o meu bravo camarada José Bernardo Monteiro, tínhamos grande expectativa em relação a este concerto. No entanto, as coisas não começaram bem, por motivos bastante residuais, como veríamos mais tarde.

Tendo, por motivos profissionais, chegado dez minutos depois da hora do início do concerto, fomos surpreendidos (estamos mal habituados...) com o facto de este já ter começado. Em palco, encontrámos apenas dois elementos (duas vozes, uma guitarra e um violino a espaços, com a estranheza de ser um homem um frontman), com alguns elementos extra esporádicos, reconhecemos a interpretação do tema "I Wish" e, por aquilo que se ouvia, começámos a ficar com a amarga sensação de desilusão. Será que, com a mudança de nome, Rachel Unthank & The Winterset tinham perdido toda a magia e se tinham transformado naquele tipo de músicos inócuos (que há por aí em abundância) que pretensiosamente se auto-intitulam de singer-songwriters folk (começa a ser altura de separar o trigo do joio)? Puro engano...Era apenas uma fraca, mas honesta, primeira parte...

Depois sim, entraram em palco os Unthanks em palco e a música foi outra. A abertura foi logo incrível: "Sad February", com um crescendo final impressionante (com destaque claro para o poder emotivo do piano), a que se seguiu um momento arrepiante à capela e sem amplificação, protagonizado pelas irmas Unthank e por Niopha Keegan, e "Lucky Gilchrist", onde se destaca a importância da guitarra e um nervo e intensidade até aqui desconhecidos na sua música. Depois, veio o mais convencional, mas não menos sublime, "Annachie Gordon", e, apesar de não conhecer até à altura nenhum dos temas interpretados, a minha rendição era já total. Aliás, passagens por The Bairns foram apenas duas, com "Felton Lonnin" e uma versão bem mais rendilhada de "Blackbird", dedicada à Penguin Cafe Orchestra, ficando de fora temas incríveis como a tal versão de "Sea Song" (em contrapartida houve uma curiosa cover de "Sexy Sadie" dos Beatles, com um início mais easy-listening, a contrastar com a progressão negra e melancólica final), "Whitethorn" ou "Blue's Gaen Oot O´The Fashion". Mas isso não diminuiu em nada a opinião que tivemos do concerto...

É que no álbum mais recente, Here's The Tender Coming, os Unthanks conseguiram a proeza de tornar o seu som mais complexo e rendilhado, acrescentando texturas sonoras, mas sem diminuir um pouquinho que seja toda a genuinidade e a emoção do registo discográfico anterior, o que o torna em mais uma inquestionável obra-prima. E a transposição para palco é incrível, com a beleza arrebatadora dos registos vocais das irmãs, a combinar na perfeição com o violoncelo, os violinos, o contrabaixo, o piano (importância fulcral), alguns toques de xilofone e o minimalismo da guitarra e da bateria (ao contrário do disco, não houve sopros, mas também não fizeram grande falta). Para além do mais, as irmãs (mais expressiva Rachel, mais tímida Becky) revelam-se simpatiquíssimas e dialogantes com o público, fazendo rasgados elogios a Sintra (pudera, é uma terra maravilhosa), contando algumas peripécias da digressão e até fazendo um comentário cómico sobre a visita do papa.

Para o fim, num encore mais do que obrigatório, ficou a versão de um tema muito alegre e quase infantil, chamado "Betsy Bell" (com direito a uma irresistível sessão de sapateado das irmãs Unthank) e a interpretação do lindíssimo tema que dá título ao novo disco. Em suma, um espectáculo com duas virtudes simultâneas: a possibilidade de ver um grande concerto e o despertar para um verdadeiro tesourinho discográfico do ano passado. Toca a ouvi-lo em repeat...

9.5.10

Gotan Project, Coliseu dos Recreios, 7 de Maio


Já lá vão cerca de dez anos que os Gotan Project surpreenderam meio mundo com a sua fusão vanguardista entre os elementos tradicionais do tango e a componente electrónica, formalizada em disco através de La Revancha del Tango. Depois de um excelente e subvalorizado segundo trabalho, Lunatico de 2006 (para mim, um álbum em que, apurando o seu som, moderando a presença da electrónica e introduzindo outros elementos interessantes, superaram o registo de estreia), o presente ano marca o regresso dos Gotan Project aos discos. Apesar do seu título, Tango 3.0 mostra, muito mais do que em Lunatico, uma tentativa de renovar o estilo e a sonoridade da banda e, nesse particular, a opção acaba, pelo falhanço de alguns temas, por se revelar pouco eficaz. É certo que o tango continua a estar no centro do disco e que há aqui propostas inovadoras bem interessantes, como o coro infantil do refrão de "La Rayuela" (homenagem ao escritor Júlio Cortazar) ou a aproximação à música mexicana em "De Hombre a Hombre". Mas o desvio para uma vertente mais easy-listening, como em "Peligro" ou em "Desilusion", a maior frieza electrónica de "Mil Milliones" ou o lado farwest de "Panamericana" soam a redondos passos em falso.

Mas chega de falar da discografia da banda e passemos ao concerto propriamente dito. Foi um coliseu completamente lotado que recebeu a banda multi-nacional (um suiço, um francês e um argentino) e os seus já habituais convidados, dois anos depois de terem actuado no Campo Pequeno. A abertura fez-se com a cover de "Cuesta Abajo" do mítico Carlos Gardel, num formato despido de electrónica, com formação instrumental com bandoneón, guitarra, violino e piano, que se fez acompanhar pela voz incrível, profundamente quente e sensual, de Cristina Vilallonga. De seguida, entrada de rompante dos DJ's para a interpretação de "Epoca" do aclamado primeiro álbum. Estava dado o mote para um concerto de contrastes, este a que se pôde assistir no Coliseu de Lisboa. Por um lado, com algumas diferenças importantes entre parte do material novo e o regresso ao passado dos Gotan Project ("Uma Musica Brutal" foi um dos grandes momentos do concerto), que infelizmente se fez com uma passagem algo residual por Lunatico, apenas com o incrível e viciante "Diferente" e com "Mi Confesion" (um dos melhores exemplos de reinvenção positiva da banda), com a presença do rapper Xoxmo a ser feita de modo digital. Aliás, o vídeo merece nota de elogio principalmente pela forma como acrescentou alguns elementos sonoros impossíveis de reproduzir ao vivo (como em "La Rayuela"), impedindo a descaracterização de alguns temas, mas também por alguns momentos interessantes de fusão entre imagem e som. Mas, o contraste fez-se também ao nível dos pormenores sonoros, nomeadamente na intervenção do lado electrónico. Quando a sua contribuição se fez como catalisador do lado sedutor do tango, como impulsionador da irrepreensível componente instrumental (nota de destaque para a óptima violinista e trompetista) e dos deliciosos momentos de spoken word, tão presentes na música do projecto, o resultado foi óptimo. Quando os ritmos electrónicos forçaram o protagonismo e deixaram o resto para segundo plano, a música que se ouviu perdeu força e qualidade.

Depois de uma versão exageradíssima de "Panamericana" (veio-me à memória a expressão "suave tribalismo noise", mas será só um devaneio da minha parte), vieram os muito requisitados encores. Aqui, alguns temas novos alternaram com dois dos grandes clássicos de La Revancha del Tango: "Queremos paz", numa versão altamente estranha e só a espaços identificável, e "Santa Maria (del Buen Ayre)". Um final apoteótico, com o público a aplaudir de forma entusiasta e genuinamente calorosa, num dos concertos mais celebrados que vi nos últimos tempos.

Concluindo, depois do fim em 2008 (a digressão desse ano era considerada a sua tournée de despedida), o regresso da banda multi-nacional pode não ter o fulgor de outros tempos e ser feito com um álbum menor, mas nem isso diminui o impacto que a sua música tem em Portugal. A reacção do público de ontem não engana: os Gotan Project continuam a ter um enorme culto de popularidade no nosso país.

8.5.10

emissão de 8 de Maio de 2010

Faiz Ali Faiz & Titi Robin - Mare Angna (In the garden of my heart) - Jaadu
Omar Souleyman - Laqtuf ward min khaddak - Dabke 2020
Omar Khorshid - Guitar el chark/Promo spot - Guitar El Chark
Tinariwen - Imidiwan afrik tendam - Imidiwan/Companions
Justin Adams & Juldeh Camarah - Sahara - Tell No Lies
Toumani Diabaté's Symmetric Orchestra - Toumani - Boulevard de l'Independence
Amadou & Mariam - Beau dimanche - Dimanche à Bamako
Killamu - Sukuma - A Minha Face
Os Lambas - Sapo - Somos Nós
Frederic Galliano & Pai Diesel - Somos de Viana - Frederic Galliano presents Kuduro Sound System
Mercury Dance Band - Envy no good - Afro-Rock Vol. 1
Ali Farka Touré & Toumani Diabaté - Sabu yerkoi - Ali & Toumani

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2.5.10

emissão de 2 de Maio de 2010

Emissão dedicada às novidades, nomeadamente o novo álbum de Konono No. 1, as últimas compilações da Soundway e Strut na sua prospecção da África perdida dos 70s, e a reabilitação de mais um mestre pela Sublime Frequencies, o egípcio Omar Khorsid.

Pigmeus Mbenzele da República Centro-Africana - Mo-sombo -
Polyphonies Vocales des Pygmees Mbenzele
Konono No. 1- Wumbanzanga - Assume Crash Position
Bob Ohiri & his Uhuru Sounds - Ariwo yaa - Nigeria Afrobeat Special
Mad Man Jaga - Hankuri - Nigeria Afrobeat Special
Otarus - Omohupa - Nigeria Special Vol. 2
Mercury Dance Band - Envy no good - Afro-Rock Vol. 1
The Big Four - Wenzani umoya - Next Stop... Soweto
Omar Khorsid - Habibaty (My beloved) - Omar Khorsid: Guitar El Chark
Mulatu Astatke, Belaynesh Wubante & Assegedetch Asfaw - Alemiye - Psych Funk 101
Kim Sun - The man who must leave - Psych Funk 101
Ali Farka Touré & Toumani Diabaté - Kala djula - Ali & Toumani

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